Com freqüência eu era transportado pelo navio do deserto – sem fardo algum-, para além dos portões da cidade santa, necessitava de alivio e paz, e simplesmente, como qualquer pessoa, considero a movimentação dos peixes, das ovelhas e principalmente de Damasco inapropriada para a consumação desse desejo.
Então percorri a margem dos poços de Salomão, abriguei-me debaixo de uma romeira e dessa benção que D’us prometeu a Moises tomei do seu fruto santo.
Devido ao calor, desfiz a dobra diagonal que me cercava a cabeça, e para que não houvesse mais queixas do furor bravio do sol, troquei o couro de hiena - que me efervescia os pés-, por enregeladas sandálias romanas.
E perto do meu telúrico céu via-se judeus cantando e gritando enquanto pisavam alegres no lagar – era o inicio do ano-. Com ternura as uvas eram laceradas pelos pés descalços, isso para que o alvo de sua moléstia escorresse até atingir o tanque menor, e ali ficaria por um longo período.
Diminuindo a euforia hebréia, os olhos escolheram cena mais mansa, e assim fizeram. Sobre um amontoado de pedras – me parecia o inicio de uma casa sem futuro promissor- descansava com extrema fadiga, um cabrito montês, que sem insistência alguma entregou se ao sono, e num gesto de inveja da mesma forma meus olhos procederam.
No mover do tempo o demônio do meio-dia revela-se. A maciez dos pensamentos escorria para um abismo vazio. O rosto que outrora ostentava harmonia e extrema satisfação pelas obras do Divino Artífice agora se afoga na triste monotonia. Temeroso com o avançar do tédio, regressei à minha alcova e voltei à atenção para o que tanto me apraz, no intuito de amainar o espírito subir a escada dos sonhos.
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague.
Análize Parte I
No Regime era preciso demonstrar que aqueles que não compartilhavam dos ideais da revolução representavam uma ameaça, um tumor a ser extirpado do seio da sociedade, enviados para o mais longe possível. Assim nasceu o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”. O Brasil a ser amado ou abandonado não era a pátria mãe idolatrada, mas o Estado construído sobre os alicerces da ditadura, restando aos opositores a alternativa de deixa-lo, afastar-se dele, se não se submetessem à ideologia dominante.
Chico Buarque não deixou escapar a oportunidade de compor “Deus lhe pague” para evidenciar o abuso existente dessa visão.
O absurdo que procura evidenciar encontramos nos versos:
“A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
(...)
Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
(...)
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
(...)
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi”
Onde seu sorriso, o ar que respira, a sua existência, o seu choro, a confraternização com os amigos em um bar, a diversão representada pelo futebol e pelo samba, as belezas naturais e femininas, o descanso semanal, são apresentados como bens patrocinados pelo governo, quando, na verdade, restringem-se a ocorrências de ordem natural, ou de origem popular, presentes em qualquer que seja o regime político.
Destaco a referência ao controle do Estado sobre o indivíduo, através do uso dos vocábulos “concessão” e “deixar”, que transmitem a ideia da necessidade da autorização oficial para tidas as ações.
Os presentes versos apresentam o conflito de ideias antagônicas, apresentando obrigações e infortúnios como benefícios concedidos pelo governo. No Primeiro caso, utiliza o trecho “A certidão pra nascer”, pois o registro de nascimento é uma obrigação dos pais e condição de reconhecimento da existência do cidadão. A ideia de infortúnio encontramos em “Prazer de chorar”, pois o choro longe de representar satisfação, simboliza sofrimento, e em “Um crime pra comentar”, já que a ocorrência de crimes é a mais forte expressão das mazelas sociais.
Nesta época, os militares da esquerda que se insurgiram contra os militares viveram clandestinamente em seu próprio país, sendo procurados como criminosos por lutarem por seus ideais, em oposição a classe dominante. Esta situação fica evidente no trecho “O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir”, que nos remete a uma condição de constante mobilidade, para dificultar sua localização e possível captura.
Sentado na calçada - lugar onde os sentimentos morrem no corredor escuro do horizonte-, com os cotovelos enterrados nas pernas, as mãos servindo de apoio para o queixo, ele observa a aproximação simultânea de cúmulos e cirros invadindo e quebrando sua alegria. Agora a mente ocupada com pedacinhos negros de destruição – de si mesmo- via o futuro planejado sendo desagradavelmente arrancado da parede dos seus sonhos.
Aumentava o cobertor que enfraquecia a sua felicidade e num turbilhão violento de tristeza chegava à tempestade – que lhe secava a boca de modo bem diferente. Não enxergava, apenas sentia – talvez seja bem pior. A nuvem difusa pairava na sua mente, lhe trazia pensamentos apagados, distantes. Como o raio que fere a madrugada, mergulhou imponente nos pensamentos e algo aconteceu.
Para uma criança de nove anos, a realidade gera cicatrizes terrificas. Incompreensíveis. Consciente que a tristeza do passado ainda fere o coração, por um minuto ele não vacilou, mas o medo do futuro explodiu dentro de si. As lagrimas o enterravam. Ele não sabia, mas a alameda da mágoa –que rangia dentro de si e o sufocava- é o seu playground, e porque não seu halloween.
Foi profundissimamente angustiante e deprimente para toda a Judéia, e principalmente para nós amigos e apóstolos a anunciação dantesca da morte de Jesus. Isso há algumas noites.
Para nós não é apenas uma tristeza enraizada na garganta, o que sentimos não se resume em solidão causada pela morte de um amigo, mestre. É mais profundo, como que se algo nos afetasse o âmago. É como que junto d’Ele nós tivéssemos morrido também.
Éramos um, ele, porém agora é parte de nós. Ele foi nosso desejo segredado de Verdade absoluto, a materialização ou encarnação dos nossos sonhos de poder tirar a coberta faraônica de nossos tapetes, nossas mesas, enfim tudo o que um Amante almeja para a pessoa por quem têm carinho.
Quão lasso está o triste poeta. Taciturna e pessimista é o resumo de sua vida. E o que pensar de si mesmo? Resta espaço para pensamentos que... estão fora de si, que vão além de si? É o olhar que não diz nada – não diz as palavras-, não refletem nada...
O silencio é um excedente da minha tristeza, arrogância (Raiva!) que se tornou demasiadamente profundo. O único opressor que se volta contra mim, que subjuga... Oprime, eu o conheço, é esta substância que nos move que nos impele à felicidade – e ao seu antagonismo.
Compreende-se isso só no seu contexto (na imagem revelada). Admitir isso é a exuberância da alma, isso chega a ser involuntariamente uma vontade libertadora...