segunda-feira, 27 de junho de 2011

Ame-o ou Deixe-o




Deus Lhe Pague
Composição: Chico Buarque
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair
Deus lhe pague
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague
Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague.



Análize Parte I
No Regime era preciso demonstrar que aqueles que não compartilhavam dos ideais da revolução representavam uma ameaça, um tumor a ser extirpado do seio da sociedade, enviados para o mais longe possível. Assim nasceu o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”. O Brasil a ser amado ou abandonado não era a pátria mãe idolatrada, mas o Estado construído sobre os alicerces da ditadura, restando aos opositores a alternativa de deixa-lo, afastar-se dele, se não se submetessem à ideologia dominante.
Chico Buarque não deixou escapar a oportunidade de compor “Deus lhe pague” para evidenciar o abuso existente dessa visão.
O absurdo que procura evidenciar encontramos nos versos:
“A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
(...)
Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e um samba pra distrair

(...)
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
(...)
Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi”
Onde seu sorriso, o ar que respira, a sua existência, o seu choro, a confraternização com os amigos em um bar, a diversão representada pelo futebol e pelo samba, as belezas naturais e femininas, o descanso semanal, são apresentados como bens patrocinados pelo governo, quando, na verdade, restringem-se a ocorrências de ordem natural, ou de origem popular, presentes em qualquer que seja o regime político.
Destaco a referência ao controle do Estado sobre o indivíduo, através do uso dos vocábulos “concessão” e “deixar”, que transmitem a ideia da necessidade da autorização oficial para tidas as ações.
Os presentes versos apresentam o conflito de ideias antagônicas, apresentando obrigações e infortúnios como benefícios concedidos pelo governo. No Primeiro caso, utiliza o trecho “A certidão pra nascer”, pois o registro de nascimento é uma obrigação dos pais e condição de reconhecimento da existência do cidadão. A ideia de infortúnio encontramos em “Prazer de chorar”, pois o choro longe de representar satisfação, simboliza sofrimento, e em “Um crime pra comentar”, já que a ocorrência de crimes é a mais forte expressão das mazelas sociais.
Nesta época, os militares da esquerda que se insurgiram contra os militares viveram clandestinamente em seu próprio país, sendo procurados como criminosos por lutarem por seus ideais, em oposição a classe dominante. Esta situação fica evidente no trecho “O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir”, que nos remete a uma condição de constante mobilidade, para dificultar sua localização e possível captura.

Continua...

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